Ainda nessa vibe de recuperar textos antigos que já traziam o problema do aceleracionismo à tona, esse foi escrito em 2015, para um evento sobre Animalidade e Literatura organizado pelo meu amigo Jonathan Fajardo, na PUCRS. Mais tarde, foi publicado pela Revista Landa. O link é esse.
Nele, sustento que o aceleracionismo é sustentado na mesma antropologia filosófica do cristianismo — inspirado pelo grande Fabian Ludueña e, sobretudo, por Derrida (que inspirou o argentino e foi meu tema de Doutorado) — e a tal da sigla já estava lá. E tudo tem relação com a tendência central da metafísica de colocar a inteligilidade como uma operação de extração da alma (imortal, imaterial, masculina, sublime) da materialidade do corpo, que se confunde com a animalidade (e a feminilidade, a negritude, a selvageria). Nisso, fica claro porque há tantas confluências: masculinidade, branquitude, eugenia, supremacismo e tecnologia. Porque tudo é uma coisa só. Derrida nos ajudou a pensar isso muito bem.
1. Na epígrafe citada acima, Derrida declara que a questão do animal foi desde sempre sua questão principal. É preciso tomar a sério e literalmente essa afirmação. Como a brincar com o acaso, o filósofo lembra em sua conferência L’animal que donc je suis naquelas frases que podem passar despercebidas terem sido três os temas dos eventos organizados em Cerisy em torno do seu pensamento: “os fins do homem”, “A passagem das fronteiras” e, finalmente, “O animal autobiográfico” (DERRIDA, 1999, p. 252). É como se a passagem do humanismo se desse exatamente na direção do animal, ou dos animais, contingência que cria uma imagem do seu trajeto intelectual. O que, afinal, isso poderia dizer?
Em Le fins de l’homme, Derrida dirige-se diretamente contra a interpretação existencialista do pensamento dos “três H’s” – Hegel, Husserl e Heidegger –, que foi iniciada por Alexandre Kojève, mas continuada e elevada a potência maior pelo pensamento de Jean-Paul Sartre. A epígrafe já descreve o movimento que tomará o texto, abordando o humanismo fundante de Immanuel Kant (o homem existe, e Derrida grifa a palavra, como um fim em si mesmo), passando por Sartre (a ontologia nos permite determinar os fins últimos da realidade humana) e indo até Michel Foucault “O homem é uma invenção” (DERRIDA, 1972a, p. 131). A tradição humanista francesa, no existencialismo cristão ou ateu, ao encampar a transcendência humana diante da história, seria ainda o reflexo da ontoteologia, mantendo a unidade metafísica entre Deus e o Homem, mesmo que ateu. O humanismo ou o antropologismo seria o solo comum dos existencialismos, ateus ou cristãos, da filosofia, espiritualista ou não, dos personalismos de direita ou esquerda e do marxismo de estilo clássico, assim como – do ponto de vista das ideologias políticas – do marxismo (novamente), da socialdemocracia ou democracia cristã (1972a, p. 138).
Como de hábito, o movimento desconstrutivo expõe a dobradiça (brisure) no pensamento dos “três H’s”. De um lado, Hegel, Husserl e Heidegger jamais poderiam ser nivelados com o humanismo metafísico da antropologia filosófica da recepção francesa: a Fenomenologia do Espírito não está relacionada com qualquer coisa que se nomeie “homem”, mas com a “experiência da consciência”; a crítica do antropologismo, tanto empírico quanto transcendental, é sabidamente um dos motivos primordiais da filosofia de Husserl; e Heidegger, finalmente, descarta explicitamente que sua ontologia se reduza ao espaço da realidade humana, dirigindo o pensamento contra o humanismo metafísico (DERRIDA, 1972a, p. 140). Todavia, mesmo afastando a interpretação antropológica dos H’s, Derrida não deixa de sublinhar os diversos momentos em que o privilégio antropocêntrico aparece em cada um deles. Hegel, ao “superar” (Aufhebung, relève) o humano no seu horizonte finito, filia-se ao discurso metafísico do telos, ligando sua teleologia a uma escatologia, uma teologia e uma ontologia que pensam “a verdade do homem”. O “nós” hegeliano, diz Derrida, “é a unidade do saber absoluto e da antropologia, de Deus e do homem, da ontoteologia e do humanismo” (1972a, p. 144, tradução livre). Em Husserl, igualmente, apesar de toda precaução contra o antropologismo, “a humanidade é ainda o nome do ente que se anuncia o telos transcendental, determinado como Ideia (no sentido kantiano) ou ainda como Razão” (p. 145-146). Finalmente, mesmo Heidegger tendo contrastado seu pensamento com a antropologia filosófica na Carta sobre o Humanismo, a humanidade continua com o privilégio no acesso à “Verdade do Ser” (p. 148). O privilégio humano, aqui, aparece a partir do “próprio”, daquilo a que só o ser humano tem o acesso. O horizonte do saber absoluto, que reassume o rastro na parousia e se reapropria de toda diferença, apagando-a no logos total, é chamado, aliás, de “metafísica do próprio” (DERRIDA, 1967, p. 41). Toda propriedade, no entanto, é uma demarcação que estabelece um outro a si própria, no caso, o animal. Este torna-se um teorema, uma “coisa vista e que não vê” (DERRIDA, 1999, p. 265).
Ao mesmo tempo, o título do presente ensaio homenageia obviamente o notável livro de Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado, tomando essa imagem anarquista como referência para também elucidar a estrutura do pensamento de Derrida a partir da mediação de Fabian Roberto Ludueña Romandini e sua genealogia da repressão da animalidade e da antropotecnia. O seminário tardio La bête et Le soverain deixará clara a conexão que foi se elucidando ao longo dessa trajetória, dessa passagem de fronteiras, em que a desconstrução da metafísica intensifica o animal como resposta à “ordem da ordem”, à matriz hierárquica fundamental que rege o Ocidente (e seu etnocentrismo) enquanto filosofia teórica e, ao mesmo tempo, filosofia política.
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Não passa despercebida a Fabian Ludueña Romandini a íntima solidariedade entre o projeto político da metafísica tradicional e o transhumanismo, antropologia especulativa que ilumina o capitalismo contemporâneo. A tendência idealizadora que busca apagar no logos a escritura (isto é, a inscrição no mundo, a materialidade) corresponde ao apagamento do corpo na alma (segundo o autor, trata-se do “poder pneumático”). Assim, o projeto antropotecnológico que alimenta a mitologia da “inteligência artificial”, as novas biotecnologias, a biologia molecular e a nanotecnologia, em grande parte envolve um redesenho artificial do corpo humano, promovendo a domesticação total que as antropotécnicas não foram capazes de lograr totalmente desde a emergência do homo sapiens (LUDUEÑA ROMANDINI, 2010, p. 200-201). Como os teólogos medievais, exemplifica o filósofo argentino,“os biotecnólogos modernos se inquietam especialmente com os excrementos corporais, justamente o resíduo mais acabado da animalidade humana” (p. 203). A singularidade, por isso, tende a desprender-se de toda forma corporal para somente preservar o padrão cognitivo como essência do humano (p. 206). Trata-se de um curioso ponto de encontro entre a ponta da tecnologia e o imaginário das hard sciences, de um lado, e a própria matriz ontoteológica sobre a qual se ergueu o Ocidente, fundada na operação de sublimar o corpo na pura idealidade, eliminando a finitude.
O capitalismo contemporâneo é visto por Jonathan Crary sob o emblema 24/7 (24 horas, 7 dias por semana) (2014, p. 18-19). O ritmo ininterrupto se acopla nas tecnologias de informação e coloniza a vida como um todo, tornando onipresente o trabalho e desrespeitando as barreiras "naturais" (isto é, a longa economia da Terra, da vida e da espécie humana), tendo como tipo ideal o "ciborgue" desafetado, um infinito reservatório de informação com capacidade acelerada de processamento e sem os constraints da mortalidade (isto é, do corpo humano e sua finitude) (p. 22- 23). Essa forma de vida manifesta-se através das indústrias da vida saudável que produzem não uma alimentação menos envenenada e mais diversificada, como se esperaria, ou a diminuição do ciclo do trabalho e do estresse, mas a resistência corporal do indivíduo a partir do consumo de drogas que aumentam sua capacidade produtiva ou de adaptações corporais que fabricam plasticamente a ilusão de "juventude eterna" (p. 12; 18-19). O capitalismo 24/7 é um regime de permanente ofuscação, um “clarão da iluminação de alta intensidade” que resulta em uma experiência de “estridência ininterrupta do estímulo monótono” (p. 43).O Vale do Silício é a Igreja desse novo regime, inclusive com sua promessa de imortalidade. O capitalismo 3.0 composto pelas tecnologias de informação abastece-se do transhumanismo e de sua mitologia da singularidade (p. 44-46). O indivíduo desafetado– na verdade, submetido a uma extrema violência neurológica e, portanto,sob efeito traumático (MALABOU, 2007) – promove uma espécie de "sublimação repressiva" na qual o próprio corpo é abstraído, uma operação de esvaziamento total na qual o espírito, transformado pela indústria do silício em plataforma de dados, recebe sua recompensa paradisíaca pelo sofrimento mundano na redenção transhumanista. Cria-se uma modalidade de sublimação que cancela o próprio corpo, deslocando a "alma" para um material mais resistente, sua versão ciborgue, ou para a pura abstração imaterial.
Texto integral aqui.
eu espero, de verdade, que o povo que está publicando em editora chique sobre aceleracionismo agora tenha a decência de citar vc, pq eu ouço/leio vc com essa temática há exatos 10 anos.